POPOL VUH: O MUNDO DESDE O COMEÇO
Rodrigo Petronio
O Popol Vuh, também conhecido como Livro do Conselho, Livro do Comum ou Livro da Comunidade, é o documento mais importante da antiguidade das Américas. Apresenta a cosmogonia (origem do universo), a antropogonia (origem da humanidade), a mitologia, a genealogia e a história dos Maias-Quiché. O documento é atribuído a um autor anônimo chamado Mestre da Palavra. Foi registrado em língua quiché pelo frei dominicano Francisco Ximénez no começo do século XVII.
Este passou a ser conhecido como Manuscrito Chichicastenango, um dos primeiros documentos escritos pelos indígenas em caracteres latinos e a verão mais antiga do poema. A edição crítica mais completa deste manuscrito foi organizada pelo erudito guatemalteco Adrián Recinos, que o descobriu em 1941. Em 1947, Recinos lança a tradução da obra para o espanhol, repleta de notas, comentários e explicações filológicas e eruditas.
Foi a partir desta edição que a poeta, ensaísta e tradutora brasileira Josely Vianna Baptista preparou uma nova tradução brasileira. Não contente com a pletora de anotações de Recinos, Josely também ampliou as notas, criando notas sobre passagens, termos e especificidades do maia-quiché e do espanhol. Além disso, também confrontou sete traduções feitas diretamente do maia-quiché, sobretudo parando inglês e o espanhol.
O resultado é a excepcional edição que a editora Ubu acaba de lançar no mercado. A obra conta também com ilustrações de Francisco França e com uma minuciosa pesquisa de texto e de iconografia realizada por Daniel Grecco Pacheco. Ademais, também traz uma extensa introdução de Recinos, onde o especialista reconstrói todo o ziguezague de suas traduções e interpretações.
Recinos parte dos escritos de Ximénez e da apropriação da obra feita pelo americanista francês Charles Étienne Brasseur de Bourbourg, que chegou à Guatemala em 1855 e deu ensejo a uma edição da obra em 1861. Esta edição produziu uma febre novecentista em torno da obra mesoamericana. Deu origem a muitos trabalhos científicos sobre essa mitologia: Bancroft, Brinton, Charencey, Chavero, Müller, Reynald, Seler, Spence, Genet.
No plano formal, Josely procura manter aspectos poéticos e retóricos do original, tal como a mescla de verso e prosa e o difrasismo, estrutura de paralelismos semânticos por meio da qual dois termos geram um terceiro significado. Para a tradutora, o difrasismo é estrutural e essencial à obra. Refere-se a aspectos formulares rituais e preserva uma dinâmica de espelhamento entre termos. Seria semelhante ao quiasmo, recurso muito utilizado na literatura do século XVII e que consiste em justapor ideias-imagens aparentemente antinômicas, sugerindo uma terceira, dialeticamente.
Esses binômios semânticos estariam presentes logo no começo do Popol Vuh, na belíssima imagem do Coração do Céu. E se espalham em micro e macroquiasmos. Não se trata de questões restritas à forma. Deitam raízes na cosmologia (imagem do universo) e na axiologia (ordem dos valores) das comunidades maias-quiché. Outro aspecto recorrente é a disseminação (Derrida) de sentidos e de nomes, bem como o poder fundador da palavra.
Um cálculo a partir de cronistas espanhóis estima que o início da dinastia quiché se situa no ano 1054. Contudo, a origem autóctone do poema se radica em estruturas antropológicas do imaginário que são transistóricas, indeterminadas e de difícil datação. Certamente o poema é composto por ciclos de narrativas de tradição oral que foram se enredando e se somando através das gerações, como uma enciclopédia movediça de conhecimentos comuns. Por outro lado, sabe-se que a produção material mesoamericana de cenas e imagens do Popol Vuh se encontra presente em estelas, cerâmicas, vasos, pratos e pinturas murais desde o período pré-clássico (2500 a.C.-200 d.C.) até o pós-clássico (1050 d.C.-1525 d.C.).
O Popol Vuh começa com o relato dos dois gêmeos fundacionais da cultura maia-quiché. São tricksters, caracterizações antropológicas e arquetípicas de personagens que apresentam profunda ambiguidade moral. Estas são entidades comuns nas narrativas mesoamericanas. A começar pelo Macunaíma, levantado pelo viajante alemão Theodor Koch-Grünberg e que serviu de base ao moderno herói sem nenhum caráter de Mario de Andrade. Os gêmeos ambivalentes também protagonizam Dois Irmãos, clássico contemporâneo de Milton Hatoum. No poema, a saga desses anti-heróis culmina com a criação do Sol e da Lua, produzidos quando ambos se atiram no fogo para gerar os dois astros.
Um dos aspectos mais fascinantes da obra é sua concepção da criação do mundo. Há deuses e deusas, que se revezam na performance de dezenas de mitos e ritos, em sequências impressionantes. Mas salta aos olhos uma questão. Diferente da Bíblia e de outras cosmogonias mesopotâmias ou mesmo orientais, o mundo não nasce pronto. Ele está sendo continuamente criado e cocriado por humanos, animais e deuses. Tanto que demora uma eternidades para a chegada dos humanos na cena mundana.
Em termos narrativos, o Popol Vuh é uma miríade de mitos, lendas, imagens, ações, performances, rituais e fábulas difíceis de serem expostas e encadeadas em um texto breve. A obra apresenta o quadro mais completo das tradições, crenças e migrações das tribos indígenas que povoaram o território que hoje representa a Guatemala e que no passado foi uma das sedes do império Maia. O tronco comum dos maias desenvolveu uma esplendorosa civilização na península de Yucatán. E se espalhou por quase todas as regiões da América Central.
O Brasil contava com uma excelente tradução em versos feita pelo poeta, tradutor e ensaísta Sérgio Medeiros, em parceria com o americanista Gordon Brotherston, professor da Universidade de Stanford, em edição bilíngue da Iluminuras. Agora, com esse enriquecimento trazido pelo trabalho de Josely e pela editora Ubu, o mapa das constelações culturais ameríndias se expande ainda mais. Fornece ao leitor a oportunidade de conhecer uma cosmologia milenar. Esta, por sua vez, não se encontra em um passado distante nem em um substrato oculto da tempo. Como queria o poeta cubano Lezama Lima, encontra-se pulsante em nosso sangue. E em cada signo ambivalente que nos torna, ainda hoje, americanos.