DON'T LOOK UP: O METEORO, A EXTINÇÃO E O UMBIGO
Nova produção da Netflix, o filme Não Olhe para Cima conseguiu dar forma a um dos maiores impasses que assolam XXI: o negacionismo. O recurso de falso documentário produziu com perfeição o misto de hiper-realismo e de alucinação com os quais convivemos todos os dias. Há diversas questões: ciência, pseudociência, cinismo capitalista, desinformação, guerras híbridas, fundamentos do jornalismo, nova era, cultos carismáticos, tecno-religiões e novas espiritualidades. Atenho-me apenas a um aspecto que para mim é o central e indivisa todos: o conceito de evidência.
Em primeiro lugar, o que mais chama a atenção no filme (e no mundo em que vivemos) é a completa dissolução do estatuto das evidências. O que é uma evidência? A evidência é algo que foi observado e testado milhares de vezes por milhares de cientistas ao longo de no mínimo dois mil de anos. Por exemplo, a teoria da evolução não é uma ideia abstrata criada por Darwin. Não é um conjunto de opiniões. Não é uma soma de hipóteses. A teoria da evolução é a constatação por meio de evidências de experimentos repetidos milhões de vezes pela ciência desde a Antiguidade.
Como nos lembra Marcelo Gleiser, um dos maiores cientistas e divulgadores de ciência do Brasil, se qualquer um dos quase 8 bilhões de humanos, de qualquer cultura, de qualquer religião, de qualquer etnia, de qualquer parte do mundo toma um antibiótico e esse antibiótico funcionar, quer dizer que a teoria da evolução é efetiva.
Vejam que utilizo a palavra efetividades e não verdade. Justamente porque a ciência não lida com a verdade, mas com a efetividade. E esta paradoxalmente é adquirida é reforçada por meio da refutabilidade. Apenas depois de ser refutada ad infinitum uma evidência se estabiliza. Por isso, tudo que não pode ser refutado não é ciência, ensina o grande Karl Popper. Isso significa que o conhecimento está sempre aberto para novas refutações que podem gerar novas evidências. Para o método científico, uma evidência só pode ser refutada por outra evidência.
A maravilha da ciência é esse paradoxo. Ela consegue atingir evidências cada vez mais potentes quanto mais assumir para si mesma sua precariedade. Ou seja: quanto menos lidar com a noção de verdade. Contudo, a não-verdade da ciência é diametralmente oposta à não-verdade da fé, das ficções, das crenças e mesmo da filosofia. Para as religiões, a verdade está no começo. Para a filosofia, a verdade está no fim. Para a ciência, a verdade simplesmente não vem ao caso a não ser de modo negativo.
A força da gravitação não é uma narrativa. Não é uma crença. Não é uma ideia. Não é uma teoria. E tampouco é uma verdade final. Por quê? Porque a gravidade não depende de nenhuma ficção, crença ou ideia humanas para continuar existindo e agindo no universo. E outras explicações futuras baseadas em novas evidências podem alterar nossa compreensão da gravidade. Isso não invalida a efetividade que a gravidade desempenhou até então.
A teoria da evolução não é uma hipótese da mesma maneira que o heliocentrismo e a esfericidade da Terra não são hipóteses. Uma hipótese é algo que ainda não tem evidências suficientes para se configurar como um fato científico. Por exemplo: a teoria das cordas. O bóson de Higgs era uma hipótese e não o é mais.
A teoria darwiniana tem limites, claro. A epigenética, a teoria Gaia, a teorias morfogênicas, as teorias da complexidade, a teoria do sistema-Terra e as novas ontologias vegetais demonstram isso. problema do finalista causal é uma das principais críticas a Darwin. Mas a adaptabilidade continua sendo um fato. Igualmente a função do acaso e da necessidade, como notou Monod, um darwiniano clássico. Isso significa que esses limites não a invalidam in toto de maneira nenhuma. E para mim ela não será invalidada daqui a milhares de anos.
O problema continua sendo imaginar que novas teorias científicas possam invalidar totalmente outras teorias científicas. Isso é mais uma vez incorrer no erro de confundir evidência e verdade. A filosofia de Hegel pode “invalidar” a filosofia de Wittgenstein e vice-versa. A filosofia de Platão pode “invalidar” a de Diógenes de Sínope e vice-versa. Isso ocorre porque toda filosofia, seja sistemática ou não, parte de pressupostos autotélicos e autofundadores. Todo filósofo é um psicopata da verdade. Por isso a história da filosofia é uma guerra entre sistemas e verdades incomensuráveis entre si.
Na ciência, isso é radicalmente diferente. O ponto de partida é a contingência, a experimentação e a evidência. Por isso, quanto mais a ciência assume a precariedade de sua condição e os limites de seu conhecimento, mais evidências ela gera e, por conseguinte, mais forte será a sua não-verdade. Ela é feita de uma fraqueza que é força, lembrando o apóstolo Paulo. Dentre todas as filosofias, o pragmatismo é o que mais se aproxima das premissas e dos método da ciência. Ele é o que tenho chamado de “filosofia experimental”. Não por acaso, o pragmatismo é uma das linhas mais marginalizadas e menos estudadas no mundo. Os filósofos tem horror aos abismos da não-verdade.
Se eu levar um tiro, a bala hospedada no meu corpo não é uma narrativa, uma ideia, uma opinião ou uma crença. E tampouco é uma verdade última, pois ela pode ser extraída. E, eu, curado. O médico que extrair esta bala do meu corpo pode ser budista, xintoísta, católico, taoista ou islâmico. A ciência que ele vai utilizar para extrair a bala do meu corpo não será uma “ciência” budista, xintoísta, católica, taoista ou islâmica. Será uma ciência-padrão relativamente uniforme, compartilhada pelos humanos que habitam a Terra no começo do terceiro milênio e que se apoia em evidências compartilhadas. A propósito, a vacina contra a covid-19 só foi possível por causa dessas evidências compartilhadas.
E aqui entra o gigantesco imbróglio do mundo contemporâneo, dissecado pelo filme. O mundo das tecnologias de comunicação de massas criou e disseminou como uma epidemia a crença perversa de que a ciência é apenas uma narrativa, uma crença, uma opinião e uma ideia. Produziu assim uma simetria entre a não-verdade da ciência e a não-verdade do senso comum.
Desse modo, as evidências geradas pela ciência ao longo de milhares de anos e de milhões e milhões de experimentos passa a equivaler à não-verdade de qualquer opinião que tenhamos acerca de qualquer coisa, entre um tweet e outro. Essa equivalência é uma monstruosidade intelectual. É a glorificação e a absolutização do eu. Afinal, o negacionismo não é nada mais do que a face devastadora do narcisismo.
Em tempo: ninguém acredita que a ciência seja neutra. Tampouco é o caso de listar os diversos momentos em que a ciência trabalhou a serviço do imperialismo. Não se pode minimizar os danos do darwinismo social, do racismo, da eugenia e de outras derivações que eu definiria como pseudociência. Não devemos também nos esquecer da eugenia e os extermínios em massa protagonizados por cientistas no Japão, a Coreia e na China no começo do século XX e ainda pouco conhecido, estudado por Hermínio Martins. Em outras palavras: abandonemos de saída a visão idílica da ciência humanista. Contudo, a despeito dessas mazelas, o que me leva a ser um defensor radical do método científico é que os ganhos são infinitamente maiores do que as perdas. E por acreditar em sua natureza profundamente democrática e libertadora. Haja vista o “anarquismo epistemológico” de Feyrabend.
Outro aspecto que precisamos levar em conta são algumas filosofias pós-estruturalistas. Não me refiro à teoria esquizo de Deleuze e Guattari, à arqueologia de Foucault e à desconstrução de Derrida. É preciso compreendê-las como debates extremamente sutis em relação à razão, à verdade e à ciência. Refiro-me às filosofias neo-hedonistas, aos socioconstrutivismos e às teorias de lugar de fala, dentre outras. Estas diluições, em suas variantes mais superficiais, mantêm uma perigosa proximidade com o negacionismo. Basta pensar no show de horrores negacionista de Giorgio Agamben e de André Comte-Sponville durante a pandemia.
Em meio a estas guerrilhas discursivas, o filme é um desfile de todos os tipos de violências e estrangulamentos das evidências da ciência levados a cabo por todas as instâncias e instituições humanas. Os governos alteram as evidências para seus fins eleitorais. Os tecno-gurus adulteram as evidências em prol de seus projetos megalômanos de trilhões de dólares. A mídia distorce as evidências em busca de métricas de audiência. A população combate as evidências para manter o status quo de suas narrativas e crenças. As ideologias sequestram as evidências, reduzindo a ciência a uma mera construção com fins políticos. E os culturalistas culturalizam as evidência para negar-lhe qualquer objetividade. A soma de todos esses fatores demonstra um novo teorema de Arquimedes e um novo axioma de Espinosa: o meteoro é menos perigoso do que o umbigo.
Por fim, quem sofre o resultado? A Terra e a humanidade inteiras, menos, claro, algumas dezenas de amigos do tecnoguru que vão em cápsulas criogênicas para algum outro planeta com vida doze mil anos no futuro. Por isso, desde o século XV e de modo cada vez mais potente, ciência experimental moderna tem se convertido em uma forma de pensar a emancipação, a liberdade e a autonomia dos seres humanos. Em outras palavras: um dos principais caminhos para a revolução.