COMO DECLINAR O MUNDO NO PLURAL

Rodrigo Petronio
14 min readMar 31, 2021

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Rodrigo Petronio

A obra Língua e Realidade de Vilém Flusser é um marco do pensamento do século XX. E pode ser vista como uma prefiguração sibilina e sibilante do que podem vir a ser alguns dos eixos estruturantes do pensamento do século XXI. Isso decorre de sua vinculação a uma tradição esquecida da filosofia: as ontologias pluralistas e, mais especificamente, o pluralismo radical. Desde William James, Charles Sanders Peirce, Alfred North Whitehead e outros, as ontologias pluralistas têm cada vez mais assumido o cerne do debate mundial. Qual seria a especificidade de Flusser? E desta obra que o leitor tem em mãos? Qual o seu diferencial neste debate atual mais amplo? Para compreender essa singularidade, precisamos reconstruir as condições de possibilidade deste livro inaugural que o leitor tem em mãos, situá-lo no conjunto de sua obra e descrever a sua importância no debate mais amplo do século XX. O eixo dessa conversação brasileira e mundial que Flusser protagoniza engloba três conceitos nucleares: ser, linguagem e natureza.

Toda formação da modernidade decorre das consequências e dos limites de ação da navalha de Ockham. Em outras palavras: das convergências e divergências entre linguagem e mundo. Não por acaso, a teoria da dupla verdade, ou seja, da heterogeneidade entre Deus e natureza, conhecida como averroísmo, e a teoria do espelhamento contingente natureza-linguagem (nominalismo) são movimentos centrais de implosão do aristotelismo-tomismo, que aos poucos foi perdendo sua validade cognitiva e sua pertinência dentro da complexidade do sistema-mundo moderno. Por isso, averroísmo e nominalismo, os dois movimentos complementares de desidentificação entre linguagem, natureza e Deus, foram os pilares sobre os quais se construiu a modernidade. Uma modernidade cuja gênese remonta ao século X, segundo o medievalista Maurice de Gandillac. Todos os sistemas da filosofia moderna, de Descartes, Hegel e Kant a Hume, Heidegger e Wittgenstein, operam a partir de uma maior ou menor articulação entre essas três instâncias: linguagem, ser e natureza. Contudo, a divisão medieval continuou a produzir problemas e antinomias. Como diz Foucault, desde o século XVII toda filosofia se resume a uma oscilação entre empirismo e transcendentalismo, entre filosofias do objeto e filosofias do sujeito. E tudo indica que os protagonistas da implosão heroica das metafísicas substancialistas antiga e medieval ainda hoje não conseguiram promover a união das duas metades implodidas desse Andrógino platônico. E essa cisão adentrou o século XX intacta. Por isso, boa parte dos esforços da filosofia contemporânea se concentram em pôr fim definitivo a este dualismo. Antes de analisarmos como Flusser opera estes conceitos e procura superar esse abismo aberto pela Navalha de Ockham, comecemos com o posicionamento desta obra no percurso de seu pensamento.

Redigida exclusivamente em português, Língua e Realidade foi finalizada e publicada em 1963 pela Editora Herder, com uma linda capa desenhada por Mira Schendel, uma das mais importantes artistas visuais brasileiras e grande amiga do autor. Esta é portanto a obra de estreia do autor. Ademais, é preciso destacar algo importante: não foi a primeira obra que havia escrito. Antes de Língua e Realidade, Flusser havia concebido e escrito duas obras: O Século XX, redigida em alemão em 1957 e que deve integrar o Volume I desta Biblioteca Vilém Flusser, e História do Diabo, escrita em 1958, reescrita e publicada em 1965 em português e publicada em alemão apenas em 1993. Também na primeira metade dos anos 1960, entre os anos de 1965 e 1966, concebeu sua obra mais extensa: O Último Juízo: Gerações. Trata-se de uma obra totalmente redigida em português e cuja versão integral a Biblioteca Flusser da Editora É publicou pela primeira vez em 2017. A linha argumentativa de Último Juízo: Gerações é uma arqueologia da modernidade. Também inaugura uma metodologia investigativa nova e própria de Flusser, baseada na fenomenologia e na filosofias da existência, que eu defini como arqueobiografia. Essa epokhé situada entre o ceticismo, o cartesianismo e a fenomenologia, que tem como objetivo reconstruir as categorias da experiência e da facticidade com o intuito de compreender a estrutura da consciência moderna, define também Da Dúvida, obra escrita em português entre 1964 e 1965, mas publicada no Brasil apenas em 1999. Completando esse arco, Flusser redigiu entre 1969 e 1970 um ensaio estendido intitulado Problemas em Tradução (ainda inédito) e publicou em 1967, em português, uma coletânea de ensaios (previamente publicados no jornal O Estado de São Paulo) intitulada Da Religiosidade. Estas duas obras estão prestes a serem publicadas no Volume VI da Biblioteca Vilém Flusser.

O que existe de comum nessa produção heterogênea iniciada nos fins dos anos 1950 e que se estende até o fim dos anos 1960? A tentativa de conectar ontologia, meio e linguagem. Desde Dilthey, a tentativa de suspender a divisão entre as ciências do espírito (Geisteswissenschaften) e as ciências da natureza (Naturwissenschaften) torna-se o âmago da filosofia. Para acessar os mundos da vida (Lebenswelten) precisamos atravessar a região antepredicativa de onde emergem todos os seres e fenômenos. A partir de Husserl, a forma suspensiva e antinaturalista por meio da qual a consciência encontra sua significação entre os parênteses e intervalos da experiência são vias de acesso privilegiados a esses estratos do mundo. Essa forma suspensiva busca as realidades eidéticas na mesma proporção em que enraíza a consciência em suas estruturas fundamentais: a intencionalidade. As realidades matriciais e a apreensão contingente da finitude se complementam para chancelar a racionalidade de um dos sistemas mais coesos e complexos que o século XX nos legou.

Qual teria sido a intuição de Flusser? Em geral, na obra de Flusser a fenomenologia promove a conexão entre ontologia e filosofia da linguagem. Isso ocorre porque a fenomenologia seria a chave de compreensão e de reconstituição de todos os dados objetivos e subjetivos da experiência, pois é um método capaz de levar em consideração a facticidade existencial e não-substancial não apenas dos dados reconstruídos, mas da consciência que os reconstrói. Os conceitos são objetivações da consciência. Contudo a subjetividade também é uma objetivação e uma unidade projetiva, emergente de cada clareira existencial originária, anterior à constituição de uma divisão sujeito-objeto. Esse não-lugar e essa região emergente, situada no limiar entre ser e linguagem e entre linguagem e natureza, que se situam as questões mais importantes para Flusser nesse começo de seu percurso intelectual. Não por acaso, a despeito de concentrar sua investigação no problema do ser, pouco relevante em Husserl, a reviravolta da ontologia produzida por Heidegger continuou seguindo em todos os momentos os passos da fenomenologia. Por seu lado, Wittgenstein chegou a uma dimensão apofática semelhante por meio do logicismo e das investigações das tautologias formais. A fenomenologia passa a ser a grande mediadora entre ontologia e filosofia da linguagem, entre as filosofias continental e analítica. Em outras palavras: entre Heidegger e Wittgenstein. E é por isso que o fio de argumentação de Língua e Realidade se desenrola em torno destes dois autores-espelho.

Entretanto, qual o diferencial de Língua e Realidade? Qual a singularidade desta obra tanto na produção de Flusser da década de 1960 quanto na ontologia e na filosofia da linguagem de meados do século XX, no Brasil e no mundo? Acredito que o diferencial seja a inserção de um conceito seminal a essa investigação: a cosmologia. Para mim, o título desta obra de Flusser é um decalque de Processo e Realidade: Ensaio de Cosmologia de Alfred North Whitehead. Publicada em 1929, reúne as Giffrod Lectures proferidas pelo filósofo e matemático britânico em Harvard entre 1927–1928 e pode ser considerada um dos cumes do pensamento metafísico em toda história da filosofia. Flusser cita Whitehead em Língua e Realidade e em outras obras desse período, inclusive nos datiloscritos de cursos e nas aulas transcritas que ministrara. A cosmologia proposta por Whitehead seria o elo perdido entre ontologia e filosofia da linguagem. Mais do que isso, por meio dos conceitos de entidades atuais e de objetos eternos, de virtualização e de atualizações, de mundos e de meios, de organismos e de preensibilidade, a filosofia processual de Whitehead foi uma das bases para a cosmologia pluralista explorada por Flusser nesta obra e em seu percurso intelectual ulterior.

A intuição brilhante de Flusser nesta obra reside no fato de que dois dos maiores expoentes da filosofia do século XX estavam absolutamente corretos em suas formulações, mas suas conclusões eram parciais. A linguagem de fato é um espelho da natureza, como queria Wittgenstein. Nunca acessamos o real. Descrevemos estados de coisas que enunciam o mundo de acordo com o caso em que o real se declina na linguagem. O átomo pertence à natureza da mesma forma que o m pertence à maçã. Essa ironia genial de Bertrand Russell nos adverte para a infinita descontinuidade entre os seres e os processos referenciais. Por seu turno, a linguagem tampouco é uma coisa, um instrumento, uma ferramenta, um meio neutro ou um utensílio. A linguagem não descreve um mundo preexistente. A linguagem cria mundos e horizontes mundanos. Ela é uma abertura (Offenheit) e uma fissura na opacidade entitativa da natureza. Quando passo pelo poço passo por dentro da palavra poço, para lembrar o mestre da Floresta Negra. E apenas assim acessamos a dimensão originária anterior às cisões representacionais e às antinomias modernas. Essa dimensão pertence à identidade entre linguagem e ser e entre ser e pensamento, pois ser e pensar são o mesmo (Parmênides). O ser humano é o ente capaz de desvelar a totalidade da cadeia entitativa porque se situa na diferença radical entre o ôntico e o ontológico, entre ente e ser. E assim é o ente capaz de captar a inteligibilidade desse mesmo mundo. A clareia aberta pelo ser é a clareira aberta pela linguagem. Como as sendas abertas pelas árvores que desabam nas florestas (Holzwege), a linguagem abre fendas no real na medida mesma em que desvela a verdade e a salva do esquecimento.

Contudo, para Flusser ambas filosofias apresentam um limite claro. Não existe a linguagem como queria Wittgenstein. Assim como não existe o ser como queria Heidegger. O pluralismo de compromissos promovidos pelos estados de coisa se inviabiliza à medida que a linguagem é pensada em termos universais. A diferença ontológica entre ser e ente, concebida a partir da radicalidade mundana e da facticidade, perde-se quando se concebe o ser. Aqui entra o curto-circuito epistêmico de Flusser que espelha e transgride estes dois autores considerados opostos. Não existe a linguagem, mas línguas. Cada língua declina mundos distintos de acordo com os limites de sua estrutura, ou seja, produz cosmologias que podem se reunir em grupos (isolantes, flexionais, aglutinantes), mas que não se simetrizam no processo aberto e infinito da tradução e da conversação. Se as línguas implodem a possibilidade de se conceber uma linguagem una, o mesmo ocorre para o ser. Se a categoria do ser é fática e mundana, não pode ser alçada ao estatuto de uma generalidade. Portanto, não há uma multiplicidade de seres que se ordena sob a equivocidade de um ser. Não há ontologias regionais subsumidas sob o imperialismo de uma ontologia geral. Há, sim, tantas ontologias quantas línguas houver. As línguas não são meios neutros de propagação de uma mesma categoria do ser. A categoria una do ser é que se pluraliza de acordo com as virtualidades de cada língua e dentro do horizonte e das potencialidades de criar e de descrever mundos distintos que cada língua traz em si. Por fim, se cada língua cria um mundo, estas línguas-mundos são unidades míticas. Cada língua gera uma cosmologia e uma ontologia específicas, pois estes mundos são internos às declinações de cada língua e constituem, dessa maneira, ontologias e cosmologias paraconsistentes distintas entre si. Vivemos em uma pluralidade de mundos e de universos paralelos que se comunicam, mas não se reduzem e não podem ser assimilados uns aos outros. Se o título mantém língua e realidade no singular é apenas uma maneira de frisar a distinção entre o formal e o existencial.

E aqui cabe um parêntesis. Essa mediação entre mito e língua adquiriu consistência nesse momento inicial do pensamento de Flusser graças a Vicente Ferreira da Silva. Tanto que o Prólogo desta obra conta com menções e agradecimentos especiais ao filósofo paulista, um dos principais amigos e interlocutores de Flusser no Brasil, morto em um trágico acidente automobilístico em 1963, antes da publicação de Língua e Realidade, e cujas Obras Completas foram publicadas pela Editora É sob minha coordenação. Os paralelos entre Flusser e Vicente são muitos e fascinantes. Ambos começaram seus percursos interessados pelo logicismo e pela matemática. Com a publicação de Lógica Simbólica, Vicente foi o primeiro no Brasil a se dedicar à lógica formal, um dos primeiros leitores dos Principia Mathematica de Whitehead-Russel, bem como o primeiro leitor de Wittgenstein e de Heidegger em solo brasileiro. O interesse pela filosofia da linguagem o levou a ser assistente de Willard Van Orman Quine, um dos mais importantes lógicos do século XX. Depois Vicente passou do logicismo formal ao paralogicismo do mito, dedicando-se a reconstruir a filosofia da mitologia de Schelling a partir de Heidegger. Flusser, por seu lado, passou de uma fenomenologia dos meios a uma ontologia relacional e desta a uma antropologia dos media. O importante aqui é destacar que, mesmo nesta obra inaugural, Flusser tinha consciência dessas conexões subterrâneas entre sua obra e a de Vicente. Por mais que por motivos evidentes lhe soasse repugnante o tema do mito e todos os compromissos e filosofemas a que a mitologia deu ensejo a partir da revolução conservadora alemã e da ascensão do nazifascismo, Flusser compreendeu perfeitamente a potência e a radicalidade do enquadramento epistêmico do mito empreendido por Vicente. Ademais, no Prólogo, Flusser não se atém a expressar uma amizade intelectual: descreve Vicente como uma presença intelectual decisiva no preâmbulo e na maturação desta obra que o leitor tem em mãos.

Não estamos diante de investigações semelhantes às de Benjamin Lee Whorf ou de Edward Sapir, sobre a ontogênese das culturas e a dispersão semântica do mundo a partir das línguas. Não estamos diante das cosmologias de Humboldt e de sua obsessão sobre a gênese da linguagem. Não estamos diante das especulações do idealismo e do romantismo, de Herder ou de Rousseau, sobre a origem das línguas. Não estamos diante das infinitas páginas de filologia dedicadas à compreensão da variabilidade das línguas do mundo. Tampouco estamos diante de uma nova teologia ou de um novo mito de uma linguagem-original (Ursprache), a busca de um fundamento edênico na pluralidade das línguas, que vai de Max Müller a Eugen Rosenstock-Huessy. Muito menos estamos diante de um gerativismo universalista, como o de Chomsky. Embora surjam como derivações das línguas naturais, as línguas para Flusser sequer se restringem à dimensão puramente linguística. As ciências, a matemática, as codificações e as tecnologias são línguas, em sentido lato e também estrito. As línguas são nesse sentido operadores e construtores de realidades, ou seja, cosmologias. Nesse sentido, a guinada proposta por Flusser nos projetos das filosofias do ser e das filosofias da linguagem é significativa. Também o é esse novo enquadramento de cosmologias pluralistas bem como o estatuto que as línguas adquirem no que poderíamos definir como uma teoria global dos meios. E aqui fica claro como o conceito de meio é matricial em todo seu pensamento, não apenas na teoria dos media e em suas obras a partir de 1980.

Como se deu esse percurso? A reorganização das categorias relacionais lhe surgiu a partir da fenomenologia e da estrutura correlacionista noesis-noema-noemata. Por seu turno, a consciência, entendida como facticidade, sempre se encontra em uma esfera de intencionalidade relacional. Heidegger se apoiara no meio, entendido como relacionalidade do ser-aí (Dasein), para consumar seu projeto de destruição da metafísica da substância. E Wittgenstein se apoiara em uma relação especular linguagem-mundo, bem como na opacidade medial presente nesta relação, para consumar a sua destruição da metafísica da identidade, reduzindo toda filosofia aos destroços de um castelo encantado de tautologia. Contudo Flusser percebeu que essas variações em torno do meio permitem camadas de opacidade e transparência. Ou seja: nem todos os fenômenos e eventos se dão em um meio neutro de relação intencional ou lógica. Os meios podem deixar de ser meios circundantes (Umwelten) transparentes. Podem se converter em meios-mediadores, opacos uns em relação aos outros. A partir dessas relações de transparência e opacidade dos meios surge uma revolução: a possibilidade dos meios serem ou se tornarem opacos entre si. Em outras palavras: serem concebidos como meios puros, destituídos de exterioridade e de finalidade. Essa possibilidade inverte os vetores da produção do pensamento.

Se a partir da fenomenologia e das filosofias da existência o pensamento passou a ser concebido como uma forma emergente dos meios-mundos vivos e do horizonte da facticidade, uma ênfase sobre a opacidade dos meios pode pluralizar as categorias constitutivas do pensamento, ou seja, a linguagem, o ser, o mundo, o cosmos. Essa inversão deflagrou o aspecto da obra de Flusser da teoria dos media. A opacidade dos meios modelou os seus conceitos de aparelho, instrumento, funcionamento e programa, presentes in nuce em O Último Juízo: Gerações, e que reverberam com tonalidades e nuances diferentes em Mutações das Relações Humanas? (1978), Pós-História (1979), Vampyroteuthis infernalis (1981), Filosofia da Caixa Preta (1982), Elogio da Superficialidade: O Universo das Imagens Técnicas (1983), A Escrita (1987), Do Sujeito ao Projeto (1990), Hominização (1991). Ou seja: em algumas obras-primas da comunicologia, da filosofia da tecnologia, da teoria da informação e da antropologia dos meios. Entretanto, é importante frisar uma evidência: a dimensão de facticidade e a transparência dos seres radicalmente situados nunca abandonaram seu pensamento. Vemo-las se desenvolver paralelamente ao longo das três décadas ulteriores de produção em Fenomenologia do Brasileiro (1971), Coisas Que Me Cercam (1972), Bodenlos (1974), Natural:Mente (1975), Os Gestos (1977), Suponhamos (1987). Não poderia ser diferente.

Pode-se criticar a abordagem de Flusser nesta obra como linguocêntrica, na extensão das críticas procedentes feitas por Anatol Rosenfeld? Seria uma obra fonocêntrica, na acepção de Derrida? Sim e não. Embora o grande meridiano da linguagem seja o pluralismo das línguas naturais, esta obra converte a língua em uma categoria. Como categoria, as línguas operam a construção de realidades não-linguísticas. Abre-se aqui por extensão um longo debate da semiologia. Em que medida é possível reduzir o sistemas de sentido em outros sistemas heterogêneos? Como um sistema de signos pode servir de matriz para a compreensão de outros sistemas sem se produzir um imperialismo semântico? Se as línguas são plurais e criam mundos distintos, por que outras existências, signos e processos podem ser reduzidos aos padrões arquitetados no interior das línguas, em um claro percurso de homogeneização? Por esses e outros motivos, é preciso mais uma vez fazer a conversão dos conceitos e compreender o percurso gerativo do pensamento de Flusser. Ao fazê-lo, veremos que as língua tem mais parentesco conceitual com os aparelhos e com os programas do que com as línguas naturais espalhadas pelo mundo. Língua e realidade são conceitos e operadores, não seres empíricos.

De Jacob von Uexküll e Aby Warburg a Derrida, de Deleuze a Sloterdijk, de Annemarie Mol a Donna Haraway, de Tim Ingold a Isabelle Stengers, de Bruno Latour e Philipe Descola a Eduardo Viveiros de Castro: a lista de pensadores pluralistas parece constituir o âmago do pensamento mais potente do mundo atual. É nessa plêiade que Flusser figura e encontra seu lugar de destaque. Como pensador sistêmico, concebeu as relações sistema-meio como acoplamentos estruturais impassíveis de disjunção. As distinções entre meios-mediadores e meios-mundos nesse sentido são apenas modulações relacionais e complementares em escalas distintas de opacidade-transparência, dependendo mais da ênfase que lhe concedamos do que de uma determinação final ou de uma eventual causa sui capaz de neutralizar essas estruturas diádicas. Diferente do que se espera, essa indecidibilidade contribui mais para a compreensão da complexidade de seu pensamento do que uma redução explicativa do todo a uma das partes que o constituem.

A gênese desse percurso ambivalente, oscilando entre o mundo da vida e a vida autônoma e autômata dos meios, entre o meio captado pelo corpo vivo e o corpo imaterial dos aparelhos e dos algoritmos, entre a teoria da informação e a facticidade, encontra-se nesta obra singular que o leitor tem em mãos. Leibniz definiu as mônadas como quartos sem janelas. Para Flusser, as línguas-mônadas seriam janelas sem quartos: tornam os mundos infinitamente comunicáveis entre si na mesma proporção em que produzem zonas cegas e pontos de incomunicabilidade incomensuráveis entre esses mesmos mundos que constroem e comunicam. Essa assimetria estrutural não é uma fatalidade, mas uma abertura e um chamado para a alteridade. Como a conversa infinita de Blanchot, essa assimetria caracteriza a conversação infinita que somos e que nos ultrapassa.

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Rodrigo Petronio

Rodrigo Petronio é escritor e filósofo, autor e organizador de diversos livros. Professor titular da FAAP e pesquisador de pós-doutorado no TIDD|PUC-SP.